Vendo um sonho
A finalizar a terceira semana de isolamento social – mais ou
menos, uma vez que em casa convivemos uma família de 4, um cão e 3 gatos, 2 que
não socializam e um outro com 2 meses, o Oreo, que socializa demais; e ainda
encontramos o calçadão da Frazoa nos dias bons bem povoado de famílias e
novos convertidos à corrida todos à conveniente distância de pelo menos um
hectómetro exceto nos cruzamentos; a dona Honorita das hortaliças e os afastados
clientes e funcionários do LIDL, do Modelo e do E Leclerck uma vez por semana;
a avozinha Inês quase diriamente durante 30 s – surgiu a esperança ou a
premonição.
As noites têm sido bem dormidas e não fosse o teletrabalho e
as conferências do Zoom até diria que esta vida de reformado não é nada má. O
merecido descanso! Só que a angústia de ver o mundo a desabar em redor, aparentemente
por coisa tão pouca e tão invisível, qual alçapão pelo qual caímos numa vertigem
sem sabermos muito bem quando e o quê vamos encontrar lá em baixo. Desconfio
que teremos de regressar, a pulso, ao ponto de partida e quando lá chegarmos
vai cheirar a terra queimada apesar de animais e plantas estarem já a atrever-se
em espaços que lhe tinham sido retirados.
Mas a história de hoje é o sonho que vendo. De corridas neste
blogue de corridas não falo porque nada há a dizer da minha parte. Mesmo as
caminhadas têm sido doridas e limitadas na distância, no tempo e no espaço
nestas últimas 3 semanas. O já referido calçadão da Frazoa e duas ou três
incursões a São Mamede que souberam a Vida. O tempo livre – curiosamente parece
que escasso – foi passado a antecipar a grande arrumação anual da biblioteca na
qual tomo consciência que para além de algumas acendalhas que também lá se
encontram, possuo como último recurso para passar pandemias às quais não
sucumba ou para primaverar eventual outonal existência ainda com visão e
discernimento, uns bons milhares de excelentes páginas impossíveis de ler e
muito menos reler numa única existência. Esperemos que os herdeiros possuam
espaço físico suficiente para não as tornar a todas também em acendalhas.
Os sonhos em tempo de pandemia deviam ser pesadelos, não
compreendo como podem ser esperançosos. As personagens de quase toda a literatura
carregam o peso das existências, sejam cada uma das que compõem o longo
estendal de derrotados do Bairro Amélia, paisagem da As primeiras coisas do Bruno
Vieira Amaral que revisito, seja a jovem Beatriz de A Mulher que correu atrás
do vento do João Tordo que me ocupou ontem o serão de brasido na lareira.
Vamos então ao sonho, o sonho que sempre vem na fase final
do sono, naquela parte de noite em que o calor passa a frio antecipando já um
despertar enérgico para os dias, agora espantosamente calmos, que se iniciam. Portalegre
era a mesma e era outra, um realismo fantástico repleto de fantasia quase
erótica certamente inspirada pelas aventuras do Físico prodigioso do Jorge de
Sena a que regressara na semana passada. Juventude, muita juventude, muita
energia, muito sorriso, tudo desembocava na antiga Setubalense e num snack-bar que
inventei lá dentro e que freneticamente acolhia e servia viajantes que nunca
sonharam existir e muito menos cá vir, mas vieram cavalgando a minha onírica
imaginação.
Um dia a tecnologia gravará os sonhos. Um dia a tecnologia
produzirá os sonhos que nos apetecer incluindo estes quase psicadélicos? Sem perigo de “nos agarrar”? Será que o
não faz já e que na verdade cavalgamos o sonho tornado pesadelo? No que vivi hoje
e que, está bem de ver, já esqueci quase todos os mil e um pormenores, tudo
termina com hordas avançando com a graciosidade da dança pelo Rossio e pela Rua
Direita, que era a existente e era uma outra mais cosmopolita, com semblantes
de pura felicidade e destinos cumpridos. Mas começou com incumpridores idosos
que desafiavam a ordem quase marcial atual mas num ápice desembocou na orgiástico
grand finale qual festival de Verão tornado tomorrowland. Nem sei porque acordei – porque tão facilmente
acordamos dos sonhos e tanto custa a acordar dos pesadelos continua a ser um
mistério – demasiado repentinamente e não pude seguir a horda, eu que como
protagonista principal no meu sonho desempenhei – inconscientemente o pedi está
bem de ver - o papel de ancião atónito,
temeroso e incrédulo.
A manhã está cinzenta e chove. O lume já está aceso. Os
gatos – mãe e filho – estão agora enrolados após meia hora de grande atividade.
A família está saudavelmente reunida que a casa é grande e permite privacidades
e, com o dia assim, hoje provavelmente nem haverá caminhada. Voltemos ao João
Tordo ou, calhando, a mais uma personagem do Bairro Amélia. As de Portalegre
estão, felizmente, por agora, confinadas, sem saberem ainda se o meu sonho é
pressentimento ou apenas delírio. Mas vendo o sonho. Alguém o compra?
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